sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

O CÉU PARA OS "ESPERTOS"


Janine era uma dessas mulheres que apreciavam a leveza do espírito e seguia a vida sem grandes "encucações". Não era metódica, não tinha vícios, mas tinha lá as suas predileções, entre estas uma certa padaria de Copacabana - que frequentava, há mais de vinte anos. Mesmo não sendo fã de praia (pois o sol, o sal e a areia castigavam sua pele alva), apreciava as caminhadas vespertinas pelo calçadão, do Copacabana Palace ao Posto 5. E acabava o passeio com uma "esticada" na tal padaria.

Num sábado, estava ela encostada no balcão dos pães, prestes a ser atendida, quando um cidadão "furou a fila", ordenando à atendente que embrulhasse um pão doce da vitrina. Indignada, Janine tocou o ombro do sujeito e apontou a fila detrás de si. Ele, por sua vez, olhou-a, de cima a baixo, e disse, em tom de deboche:

- Se liga, dona! (sic) O mundo é dos "espertos"!

Ela, que no geral era tranquila, estava diante de uma das situações que mais detestava. Poucas coisas, de fato, a tiravam do sério. Uma delas era a má educação das pessoas. Não foram poucas as vezes que discutira por tal motivo. Nem seria a última. O comportamento daquele homem era-lhe inadmissível e ela não deixaria "barato":

- É verdade. - retrucou Janine. O mundo é mesmo... "dos espertos", como você diz. O problema é que vovó dizia que toda esperteza tem fim, às vezes rápido, às vezes trágico. Então, boa sorte. E, antes que me esqueça, "dona" é a senhora sua avó!

Ele, que até então sustentava no rosto o cínico sorriso dos desavergonhados, franziu o cenho e tornou a olhar, com desprezo, para Janine:

- Vá se danar! - disse, dando as costas.

Embora sentisse a alma ferver, ela engoliu o ódio e não desviou os olhos do homem que então se dirigia ao caixa. Quando este alcançou a porta da padaria, já à calçada, ela arrematou, num tom grave, porém cristalino, de modo que todos ali pudessem ouvir:

- O inferno está próximo e você está na beirola! Tenha cuidado, espertalhão!

Ele ouviu e, sem interromper os passos, olhou para trás, enfurecido:

- Ora, vá se fod...

Mas não chegou a completar a frase. Um veículo de passeio desgovernado avançou pela calçada e colheu o sujeito, ali mesmo, à porta do estabelecimento. A colisão se deu com tamanha violência que fez o corpo dar uma volta completa em torno de si e cair de barriga, estático, sem vida. Como que por milagre só ele fora atingido, ninguém mais. Foi o que constatou o grupo de curiosos que logo se dispôs a conjeturar sobre as causas do ocorrido.

Elisa, a atendente, retrocedeu dois passos, por detrás do balcão, enquanto olhava para Janine com pavor. Vira a cliente murmurar para si mesma, como se a orar, ou a invocar um feitiço, pouco antes de aquele homem alcançar a porta da padaria. Ou não vira? Já duvidava de si, tamanho o medo que lhe acelerava o pulso. Estava confusa e não confiava nos próprios sentidos. Mas estava convicta de que ouvira a cliente pronunciar a palavra "inferno". Foi o bastante para fazê-la apertar nas mãos o terço que trazia consigo. Em seus olhos, era possível ler o que lhe estava claro: fora a cliente quem provocara a tragédia!

Janine, percebendo o terror que se apoderava da mulher, repreendeu-a, com o indicador em riste e firmeza na voz:

- Não olhe para mim desse jeito! Eu não interfiro nas coisas de Deus!

Mas a atendente não se convencera. Religiosa que era, tratou de acender duas velas, ao chegar em casa: uma, para a alma que subira; outra, para afastar de si a bruxa que, tinha certeza, amaldiçoara aquele infeliz.

(de Francisco Filardi - inspirado no livro "A arte de ser leve", de Leila Ferreira, Principium/Editora Globo, 13ª reimpressão, 2015)

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