sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

"UMA JANELA PARA MARIA", UM CONTO PARA PEQUENOS E GRANDES SONHADORES

UMA JANELA PARA MARIA*
(de Francisco Filardi)
 




Ao ser indagada pela mãe sobre o que gostaria de ganhar em seu décimo aniversário, Maria respondeu com uma espontaneidade tal que quase soou como atrevimento:

- Ora, mamãe, eu quero uma janela!
"Uma janela?!" – indignou-se a mãe – "Essa menina deve estar maluca!" - pensou.

É claro que dona Alvinha não levara a sério o desejo da filha. Aquele pedido lhe parecera tão estranho que só poderia ter saído de um livro de contos de fadas ou de um filme. Por isso, arriscou uns passos pelo quarto da menina, em busca do que lhe comprovasse a suspeita: um livro ou DVD fora do lugar. Mas nada havia, pois, que a entregasse.

No quarto de Maria havia uma janela, que ia de lado a outro da parede. Ali, estavam suas begônias, cuidadosamente cultivadas, em delicados vasinhos, dispostos um após o outro, sobre o parapeito. Trabalho de dona Alvinha, claro. A Maria, cabia o cuidado de conversar com as flores, como se o fizesse com uma pessoa da família ou alguma coleguinha da escola. Havia tanto desembaraço e naturalidade nesse cuidado! Ah, como havia! Tanto que Dona Alvinha até achava graça nas conversas da filha. “Um sólido exercício criativo!”, dizia. No entanto, acreditava que era preciso manter um distanciamento saudável entre ficção e realidade. “Uma janela?!- perguntou-se. Aquilo lhe parecera demais, embora a palavra criatividade não oferecesse rima segura para o distanciamento pretendido...

Quando retornava das aulas, à tarde, Maria adorava debruçar-se à janela. Flexionava os joelhos e dava um leve impulso em seu corpinho delicado, até que os pés deixassem o chão. Alcançava o parapeito com relativa facilidade. Colocava as pernas para fora e ali ficava, sentada, de frente para o jardim. Daí seus olhos deparavam com aquele céu magnífico, de nuvens de algodão, que tanto a encantava. Um céu onde nuvens mágicas ganhavam contornos de animais, de objetos, de pessoas: um distinto cavalheiro de terno e gravata; um gato sisudo e desconfiado; um chapéu de madame, repleto de penas; e até um anjo de asas enormes, que parecia sorrir timidamente para Maria. Quanta imaginação!

  • Uma janela?! – retrucou dona Alvinha, já à porta do quarto, enquanto perscrutava a janela, ao fundo.
  • É, mãe, uma janela! – confirmou a menina, impaciente com a incredulidade da mãe.
  • Mas... para quê? Você já não tem uma? - perguntou dona Alvinha, tentando dissuadir a menina daquela ideia absurda.
  • Ora, mamãe, é para caber mais nuvens no meu quarto! - respondeu Maria, com um cinismo sem precedente. - Agora, pode preparar algo para eu comer? - prosseguiu. - Estou com uma fome...

A miúda tinha um talento incomum para fazer a mãe sorrir, mesmo em situações adversas. E mencionar comida era sempre um bom modo de escapar desses embaraços. Dona Alvinha, ainda que com um sorriso intrigado, fechou por trás de si a porta do quarto e foi até a cozinha preparar algum quitute. “Para caber mais nuvens”, pensava, ao ganhar o corredor. “ falta Maria querer destelhar a casa, para que caibam outras nuvens mais”! E deu de ombros. Já a menina, deu-se por satisfeita. E sorriu com a própria marotagem.

Já era noite. Ainda assim, Maria permanecia à janela. Não para conversar com suas begônias. Mas para escorregar os olhos naquele estupendo tapete de estrelas. E deleitar-se com a leveza de suas ideias extraordinárias. Perguntava-se quando ganharia uma janela. Não uma janela de madeira, ferro ou alumínio: essas, Maria as tinha. Ela queria uma que a inspirasse a realizações, que lhe fizesse transbordar felicidade. Maria não fazia ideia do futuro que a esperava, mas seguia a sua intuição. E intuição era uma particularidade feminina, como dizia a sua mãe.
 
A lua, pálida e discreta, não se atrevia a responder. Nem as estrelas, nem a escuridão, nem o silêncio. Mas Deus sabia o que passava no coração de Maria. Deus sabia. E ela esperava, paciente, entre nuvens e suspiros.

Muitas vezes, ainda, Maria tornaria a debruçar-se à janela. E muitas nuvens mágicas haveriam de formar figuras naquele céu, em que ela acreditava ser todinho seu. Mas a menina queria mesmo que o tempo a tornasse mulher; era o desejo secreto de toda menina: crescer, para desvendar mistérios incompreendidos.

O tempo passou. Maria cresceu e, de fato, desvendou alguns mistérios (não todos). Já dona Alvinha, há muito faz parte daquele estupendo tapete de estrelas para o qual sua filha tanto escorregava os olhos. Quanto as janelas - de madeira, ferro ou alumínio - estão lá, apodrecidas, enferrujadas, porém firmes. São testemunhas de uma memória que não esvaneceu.
 
A janela que Maria tanto desejava na infância era uma oportunidade, um bater de asas para experimentar a vida e realizar nuvens. Nuvens de sonhos. Sonhos de menina. Sonhos de Maria. E não apenas uma, mas muitas janelas se abririam para aquela que amava begônias e passava horas a contemplar nuvens. Maria, ela mesma, era uma janela aberta para o mundo.

* publicado originalmente em 16/09/2014.


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