sábado, 5 de abril de 2014

"A MORAL DO XADREZ", DE BENJAMIN FRANKLIN


O xadrez é o jogo mais antigo e universal que se conhece entre os homens. Sua origem situa-se além da memória da história, e, ao longo de inúmeras épocas, ele tem constituído a diversão de todos os países civilizados da Ásia - os persas, os indianos e os chineses. A Europa o recebeu há mais de mil anos. Os espanhóis o difundiram através de suas regiões na América, e recentemente ele tem aparecido nos Estados Unidos. Ele é tão interessante em si mesmo que para se engajar nele não se precisa da indução pelo objetivo do ganho, e, dessa forma, nunca se joga xadrez a dinheiro. Por isso, os que dispõem de lazer para esse tipo de diversão não encontram outra que seja mais inocente. E o texto a seguir, escrito com a intenção de corrigir (entre alguns jovens amigos) certas pequenas impropriedades na sua prática, demonstra que ao mesmo tempo, nos efeitos que exerce sobre a mente, ele pode não ser apenas inocente, mas sim vantajoso, tanto para o derrotado quanto para o vitorioso.

O jogo de xadrez não é meramente uma diversão ociosa. Muitas valiosas qualidades da mente, úteis no decorrer da vida humana, são adquiridas ou reforçadas por ele, de forma a se tornarem habituais, disponíveis a qualquer momento. Pois a vida é uma espécie de xadrez, no qual muitas vezes temos pontos a ganhar, e competidores ou adversários para enfrentar, e onde há uma ampla variedade de fatos bons e ruins que, em certa medida, são os efeitos da prudência, ou da sua falta. Através do jogo de xadrez, nós podemos aprender o seguinte:

I. Previsão: olhar um pouco para o futuro e considerar as conseqüências que podem aguardar determinada ação. Pois ocorre continuamente ao jogador a seguinte reflexão: "Se eu mover esta peça, quais serão as vantagens da minha nova situação? Qual a utilidade que o meu adversário poderá obter com esta última para me causar problemas? Que outras movimentações posso fazer para dar apoio àquela jogada, defendendo-me do ataque dele?"

II - Circunspeção: observar todo o tabuleiro, ou o cenário da ação, as relações e situações de cada peça individualmente, os perigos aos quais elas estão expostas, as várias possibilidades de se ajudarem mutuamente; as probabilidades de o adversário poder fazer esta ou aquela jogada, e atacar esta ou aquela peça. E que diferentes meios poderão ser usados para evitar esse ataque, ou fazer com que as conseqüências do mesmo se voltem contra seu autor.

III - Precaução: não realizar nossas jogadas muito apressadamente. Adquire-se melhor este hábito quando se observam estritamente as leis do jogo, tais como "se alguma peça for tocada, ela necessariamente deverá ser movida para algum lugar; e se ela for colocada em algum lugar, deverá ser deixada ali". Por isso, é melhor que essas regras sejam observadas à medida que o jogo se torna cada vez mais a imagem da vida humana, e particularmente da guerra; onde, se ocuparmos inadvertidamente alguma posição ruim e perigosa, não teremos permissão do inimigo para retirar nossos soldados e colocá-los em maior segurança, mas sim, teremos de arcar com todas as conseqüências da nossa precipitação.

E por fim, com o xadrez adquire-se o hábito de não se desencorajar com a aparência ruim da atual situação dos negócios, o hábito de sempre esperar por uma mudança favorável e o de perseverar na busca de soluções. O jogo é tão cheio de lances, há nele uma tal variedade de guinadas, a sua fortuna é tão sujeita a súbitas vicissitudes, e com tanta freqüência a pessoa, após uma reflexão, descobre os meios de se desembaraçar de uma dificuldade supostamente insuperável, que ela se sente estimulada a prosseguir no combate até o fim, esperando obter por sua própria capacidade a vitória ou, pelo menos, chegar a um empate, graças à negligência do adversário. Todo aquele que perceber que no xadrez, muitas vezes, certos momentos de sucesso podem produzir presunção e, conseqüentemente, falta de atenção, pela qual posteriormente perde-se mais do que se ganha - ao passo que os lances infelizes podem produzir maior cuidado e atenção, pelos quais a perda poderá ser recuperada -, irá aprender a não desanimar diante do atual sucesso do adversário, nem desesperar-se a cada pequeno xeque que receber na procura da boa sorte final.

Para que dessa forma sejamos induzidos com maior freqüência a escolher essa benéfica diversão, em lugar de outras que não proporcionam as mesmas vantagens, toda circunstância capaz de aumentar os prazeres da mesma deve ser considerada; e cada ação ou palavra injusta, desrespeitosa ou que de alguma forma possa produzir desconforto deverão ser evitadas, como contrárias à intenção imediata de ambos os jogadores, qual seja, a de passar agradavelmente o tempo.

Por isso, em primeiro lugar: se o acordo for jogar segundo as regras estritas, então essas regras deverão ser exatamente observadas por ambas as partes, e um lado não deve insistir nelas, enquanto o outro delas se desvia, pois isso não é justo.

Em segundo lugar: se ficar estabelecido que a partida não deverá observar exatamente as regras, mas que um dos lados requer indulgências, este deverá também permitir as mesmas para o outro lado.

Em terceiro: nenhum falso lance jamais deverá ser feito para livrar alguém de uma dificuldade, ou para obter vantagem. Não pode haver prazer de se jogar com uma pessoa se ela for flagrada nessas práticas injustas.

Em quarto lugar: se o nosso adversário for lento para jogar, não devemos apressá-lo ou manifestar desagrado com a sua lentidão. Não devemos cantarolar, ou assobiar, nem olhar para o relógio, nem apanhar um livro para ler, nem sapatear no chão, nem tamborilar os dedos sobre a mesa, nem fazer nada que possa perturbar sua atenção. Pois todas essas coisas desagradam, e não demonstram nossa vontade de jogar, mas sim nossa malícia ou rudeza.

Em quinto lugar: não devemos esforçar-nos por divertir ou iludir o adversário, fingindo ter feito jogadas ruins, declarando que agora perdemos o jogo, a fim de fazê-lo sentir-se seguro, descuidado e desatento aos seus planos. Pois isso é fraude, e trapaça, e não habilidade de jogar.

Em sexto: quando obtivermos uma vitória, não devemos empregar expressões de triunfo ou insultuosas, nem manifestar alegria, mas sim esforçarmo-nos por consolar o adversário e fazer com que fique menos insatisfeito consigo mesmo, através de expressões gentis e civilizadas, que podem ser usadas com sinceridade, tais como "Você compreende melhor do que eu o jogo, mas é um tanto desatento", ou "Você esteve melhor na partida, mas aconteceu alguma coisa que distraiu os seus pensamentos, e isso fez tudo virar a meu favor".

Em sétimo: se formos espectadores enquanto os outros jogam, devemos observar o silêncio mais completo. Pois se dermos algum conselho, ofenderemos a ambas as partes. Ofendemos aquele contra o qual damos o conselho, porque isto poderá causar a sua derrota no jogo; e, ofendemos aquele a favor de quem damos o conselho, porque, embora possa ser um bom conselho, se ele o seguir perderá o prazer que poderia ter se lhe permitíssemos pensar que a ideia havia ocorrido a ele. Mesmo depois de uma partida, ou partidas, não devemos demonstrar, recolocando as peças, que determinada jogada poderia ter sido mais bem realizada; pois isso desagrada e pode ocasionar discussões ou dúvidas sobre a verdadeira situação. Toda conversa com os jogadores diminui ou distrai sua atenção, e por isso é desagradável. Tampouco se deve dar a mais mínima sugestão a nenhuma das partes através de qualquer espécie de ruído ou de movimento. Se o fizermos, não estamos aptos a ser espectadores. Se quisermos exercitar ou demonstrar nosso próprio julgamento, façamos isso jogando nossa própria partida, quando tivermos oportunidade de fazê-lo, e não pela crítica, ou nos imiscuindo, ou aconselhando jogadas aos outros.

Por último: se não é para se jogar com todo o rigor, de acordo com as regras mencionadas acima, então moderemos nosso desejo de vitória sobre o adversário, e fiquemos satisfeitos também com uma possível derrota. Não vamos agarrar avidamente qualquer vantagem oferecida pela pouca habilidade ou desatenção do outro, mas sim, gentilmente, mostremos a ele que, com aquela determinada jogada, ele estará colocando ou deixando sua peça em perigo, sem apoio, e que por meio de outra jogada ele colocará o rei em situação difícil etc. Por essa civilidade generosa (tão oposta à injustiça condenada acima) pode-se, na verdade, perder o jogo para o adversário, porém ganharemos o que há de melhor: a sua estima, o seu respeito e o seu afeito, juntamente com a aprovação e boa vontade silenciosas dos espectadores imparciais.

texto publicado originalmente pela Columbian Magazine, em dezembro de 1786

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