sexta-feira, 9 de novembro de 2012

"ÍNDIOS, XINGU E NÓS, OS SELVAGENS" UM TEXTO DE FRANCISCO FILARDI

ÍNDIOS, XINGU E NÓS, OS SELVAGENS
(por Francisco Filardi) 


No Brasil, ninguém gosta de índio, filho...”. A frase, dita pelo então governador de São Paulo, Jânio da Silva Quadros, a Orlando Villas Bôas, pouco antes do pleito que o elegeu presidente da República, em 1960, é citada com certo destaque no filme Xingu e talvez explique, em parte, a pífia bilheteria do filme dirigido por Cao Hamburger. Desde a estreia, em 06/04/12, até 03/06/12, foram vendidos 367.928 ingressos, segundo o site Adoro Cinema.

No início de maio1, Artur Xexéo, colunista do jornal O Globo, do Rio de Janeiro, publicou o texto “A nova classe média não vai ao Xingu”, que trazia a seguinte consideração sobre o filme: Lotou as salas de circuitos que ainda podem ser chamados de “de arte” e deixou às moscas os cinemas que ainda podem ser chamados de “da periferia”. No Rio de Janeiro, por exemplo, isso significa filas para ser assistido em cinemas da Zona Sul, e salas vazias nos shoppings de subúrbio.

Assisti ao filme em três ocasiões, em cinemas das zonas norte e sul do Rio de Janeiro, e testemunhei o relatado por Xexéo. Ainda assim, o jornalista relativiza o mau desempenho de Xingu, comparando-o com produções como “O artista”, vencedor do Oscar de Melhor Filme este ano, que alcançou na terceira semana de exibição apenas 151.539 espectadores. Sob este ângulo, Xingu é um grande sucesso!, arremata Xexéo. Mas este, no meu entendimento, é um argumento débil. Xingu de fato “suou” para alcançar a bilheteria citada2, o que não faz jus à obra, tampouco ao que ela representa. Um de seus produtores, o cineasta Fernando Meirelles, acreditava que o filme superaria a casa de um milhão de espectadores. Tinha potencial para isso. É um belo filme. Amei Xingu. Aborda, com sensibilidade e uma certa poesia, a dura marcha dos irmãos Villas Bôas a fim de contatar e agrupar índios de diversas etnias nos limites do Parque Nacional, que completou cinquenta anos em 2011. No entanto, o esforço pela preservação do homem e da cultura indígena está distante de encontrar solução definitiva. Três fatos recentes parecem dar sentido à declaração de Jânio Quadros:

primeiro, a polêmica sobre os impactos ambientais e sociais decorrentes da construção da usina hidrelétrica de Belo Monte, no Rio Xingu, na altura de Altamira/PA. A antropóloga Carmen Junqueira, estudiosa dos povos indígenas do Alto Xingu, em recente entrevista concedida à jornalista Camila Nóbrega, do jornal O Globo3, é contrária à construção da usina, o que classifica como “desenvolvimento a qualquer custo” - com consequências terríveis para os povos indígenas, a exemplo dos Kaiapós e dos Jurunas. Para sustentar sua opinião, a antropóloga comenta que visitou as instalações da hidrelétrica de Tucuruí, no Rio Tocantins, também no Pará, onde deparou com um tremendo impacto sobre o ambiente e os habitantes da região. “..., quando estive lá, não consegui nem enquadrá-la numa foto, dado o tamanho do monstro”, observa. Carmen conclui que, além de lutarem pela própria sobrevivência e de zelarem pela natureza, os índios avessos à construção da usina de Belo Monte estão protegendo também a nós, não índios, dessa agressão;

em seguida, temos a determinação da Justiça Federal de Naviraí/MS de expulsar 170 índios das etnias Guarani-Kaiowá de acampamentos situados às margens do rio Hovy, na fazenda Camborá, localizada em Iguatemi, município do cone sul do Mato Grosso do Sul, por reivindicarem sua permanência em territórios ancestrais. Ocorre que esse território, de dois hectares de extensão, encontra-se numa fazenda de cerca de 700 hectares... Segundo Tonico Benites4, um forte sentimento religioso de pertencimento à terra permeia a existência e a sobrevivência desses índios no local; No dia 30/10/12, decisão do Tribunal Regional Federal da 3a. Região garantiu a permanência dos Guarani-Kaiowá na terra reivindicada, mas em se tratando de decisão da justiça brasileira, a pergunta que cabe é: até quando?

por fim, um outro episódio polêmico envolvendo o risco de demolição do antigo Museu do Índio, na rua Mata Machado, imediações do estádio Mário Filho (Maracanã), no Rio de Janeiro. A finalidade, segundo o governo do estado, seria melhorar um dos acessos ao estádio visando à Copa do Mundo de 2014. Embora a decisão da juíza federal Edna Carvalho Kleemann, da 12ª Vara Federal do Rio de Janeiro, tenha proibido a demolição e o despejo dos vinte índios que vivem nas ruínas do Museu, o Jornal do Brasil online noticiou, no dia 29 de outubro, que o governador Sérgio Cabral (mesmo com a proibição citada) adquiriu da Companhia Nacional de Abastecimento o terreno onde está situado o antigo Museu, por 60 milhões de reais. Ou seja, futuro incerto para os índios da chamada “tribo Maracanã”.

Segundo o Censo Demográfico 2010, publicado em abril de 2011 pelo IBGE5, há 896.917 índios no Brasil (desse total 78.954 não se declaram, mas se consideram indígenas). Não é uma população a ser desprezada. Dado o seu crescimento significativo, vem enfrentando problemas em quase todos os estados brasileiros. O texto “A saga dos Guarani-Kaiowas”, assinado pelos jornalistas Camila Nóbrega, Cleide Carvalho e Guilherme Voitch6, informa que 56 conflitos fundiários envolvendo índios foram registrados em 2011, em 16 estados, segundo a Comissão Pastoral da Terra.

Centenas de índios são mortos defendendo suas terras de inimigos históricos, a exemplo de fazendeiros, madeireiros e garimpeiros, como visto em Xingu. É a ganância que sufoca o homem. É o sentimento obsessivo de ter “a qualquer preço” que o faz perder o senso e a razão. Não é preciso que vendamos todas as almas dos nossos índios num leilão7, para enriquecermos às custas do país. Porque o país enriquece, não as pessoas. Pessoas são sempre sacrificadas por um “bem”(?) maior. Essa balança está desnivelada. Precisamos de recorrer à lição que aprendemos ainda nos primeiros anos do ensino fundamental: os índios foram os primeiros habitantes desta terra, por eles batizada Pindorama. E não há como mudar a História. Não ESSA História.

Precisamos de resgatar a nossa condição humana e frear em definitivo a matança de índios. Não é pelo fato de nós, habitantes dos grandes centros, desconhecermos ou não entendermos seus costumes, suas crenças e rituais, sua cultura ou a história de seus antepassados, que devemos rechaçá-los, combatê-los, eliminá-los. Precisamos de respeitar tudo aquilo que não conhecemos (ou tememos). E, acima de tudo, precisamos de respeitar o “homem índio” como o ser humano que é, como parte da Natureza.

Por fim, reproduzo a carta encaminhada pelo cacique Seattle, da tribo Duwamish, do Estado de Washington, ao então presidente dos Estados Unidos, Franklin Pierce, em 1854, como resposta à intenção do governo em adquirir território de sua tribo. Trata-se de uma reflexão acerca do nosso posicionamento em relação ao mundo e acerca do (nosso) presente e futuro; um tratado sobre o homem em equilíbrio com a Natureza.


A carta do cacique Seattle

"O grande chefe de Washington mandou dizer que deseja comprar a nossa terra. O grande chefe assegurou-nos também de sua amizade e sua benevolência. Isto é gentil de sua parte, pois sabemos que ele não necessita da nossa amizade. Porém, vamos pensar em tua oferta, pois sabemos que se não o fizermos, o homem branco virá com armas e tomará nossa terra. O grande chefe em Washington pode confiar no que o chefe Seattle diz, com a mesma certeza com que nossos irmãos brancos podem confiar na alternação das estações do ano. Minha palavra é como as estrelas - elas não empalidecem".
Como podes comprar ou vender o céu, o calor da terra? Tal ideia é-nos estranha. Nós não somos donos da pureza do ar ou do resplendor da água. Como podes então comprá-los de nós? Decidimos apenas sobre o nosso tempo. Toda esta terra é sagrada para o meu povo. Cada folha reluzente, todas as praias arenosas, cada véu de neblina nas florestas escuras, cada clareira e todos os insetos a zumbir são sagrados nas tradições e na consciência do meu povo. Sabemos que o homem branco não compreende o nosso modo de viver. Para ele um torrão de terra é igual a outro. Porque ele é um estranho que vem de noite e rouba da terra tudo quanto necessita. A terra não é sua irmã, mas sim sua inimiga, e depois de exauri-la, ele vai embora. Deixa para trás o túmulo dos seus pais, sem remorsos de consciência. Rouba a terra dos seus filhos. Nada respeita. Esquece a sepultura dos antepassados e o direito dos filhos. Sua ganância empobrecerá a terra e vai deixar atrás de si os desertos.
A vista de suas cidades é um tormento para os olhos do homem vermelho. Mas talvez isso seja assim por ser o homem vermelho um selvagem que nada compreende. Não se pode encontrar paz nas cidades do homem branco. Nem um lugar onde se possa ouvir o desabrochar da folhagem da primavera ou o tinir das asas de insetos. Talvez por ser um selvagem que nada entende, o barulho das cidades é para mim uma afronta contra os ouvidos. E que espécie de vida é aquela em que o homem não pode ouvir a voz do corvo noturno ou a conversa dos sapos no brejo, à noite? Um índio prefere o suave sussurro do vento sobre o espelho da água e o próprio cheiro do vento, purificado pela chuva do meio-dia e com aroma de pinho. O ar é precioso para o homem vermelho. Porque todos os seres vivos respiram o mesmo ar - animais, árvores, homens. Não parece que o homem branco se importe com o ar que respira. Como um moribundo ele é insensível ao seu cheiro. Se eu me decidir a aceitar, imporei uma condição. O homem branco deve tratar os animais como se fossem seus irmãos. Sou um selvagem e não compreendo que possa ser certo de outra forma. Vi milhares de bisões apodrecendo nas pradarias, abandonados pelo homem branco que os abatia a tiros disparados do trem. Sou um selvagem e não compreendo como o fumegante cavalo de ferro possa ser mais valioso do que um bisão que nós, os índios, matamos apenas para sustentar nossa própria vida.

O que é o homem sem os animais? Se todos os animais acabassem, os homens morreriam de solidão espiritual porque tudo quanto acontece aos animais pode também afetar os homens. Tudo está relacionado entre si. Tudo que fere a terra fere também os filhos da terra. Os nossos filhos viram seus pais serem humilhados na derrota. Os nossos guerreiros sucumbem sob o peso da vergonha. E depois da derrota passam o tempo em ócio, e envenenam seu corpo com alimentos doces e bebidas ardentes. Não tem grande importância onde passaremos nossos últimos dias - eles não são muitos. Mais algumas horas, até mesmo uns invernos, e nenhum dos filhos das grandes tribos que viveram nesta terra ou que tem vagueado em pequenos bandos nos bosques, sobrará para chorar sobre os túmulos, um povo que um dia foi tão poderoso e cheio de confiança como o nosso. De uma coisa sabemos, que o homem branco talvez venha um dia a descobrir: o nosso Deus é o mesmo Deus! - Julgas, talvez, que o podes possuir da mesma maneira como desejas possuir a nossa terra. Mas não podes. Ele é Deus da humanidade inteira. E quer bem igualmente ao homem vermelho como ao branco. A terra é amada por Ele. E causar dano à terra é demonstrar desprezo pelo seu Criador.
O homem branco também vai desaparecer talvez mais depressa do que as outras raças. Continua poluindo tua própria cama, e hás de morrer uma noite, sufocado nos teus próprios dejetos! Depois de abatido o último bisonte e domados todos os cavalos selvagens, quando as matas misteriosas federem à gente, e quando as colinas escarpadas se encherem de mulheres a tagarelar - onde ficarão então os sertões? Terão acabado. E as águias? Terão ido embora. Restará o adeus à andorinha da torre e à caça, o fim da vida e o começo da luta para sobreviver.
Talvez compreenderíamos se conhecêssemos com que sonha o homem branco, se soubéssemos quais as esperanças que transmite a seus filhos nas longas noites de inverno, quais as visões do futuro que oferece às suas mentes para que possam formar os desejos para o dia de amanhã. Mas nós somos selvagens. Os sonhos do homem branco são ocultos para nós. E por serem ocultos, temos de escolher o nosso próprio caminho. Se consentirmos, é para garantir as reservas que nos prometeste. Lá talvez possamos viver os últimos dias conforme desejamos. Depois do último homem ter partido e a sua lembrança não passar de uma nuvem a pairar acima das pradarias, a alma do meu povo continuará a viver nestas florestas e praias, porque nós as amamos como um recém-nascido ama o bater do coração de sua mãe. Se te vendermos nossa terra, ama-a como nós a amávamos. Protege-a como nós a protegíamos. Nunca esqueças como era a terra quando dela tomaste posse. E com toda tua força, o teu poder, e todo o teu coração - conserva-a para teus filhos e ama a todos. Uma coisa sabemos: o nosso Deus é o mesmo Deus. Esta terra é querida por Ele. Nem mesmo o homem branco pode evitar o nosso destino comum8."

Referências

1Segundo Caderno, jornal O Globo, edição de 02/05/2012

2A bilheteria de Xingu pode ter sofrido, em parte, o impacto do blockbuster “Os vingadores” (dir: Joss Whedon), que estreou em 27/04/2012

3Caderno Amanhã, jornal O Globo, edição de 16/10/2012

4Guarani-Kaiowá, mestre e doutorando em Antropologia Social pela UFRJ, em texto publicado no Caderno Prosa, jornal O Globo, Rio de Janeiro, edição de 27/10/2012

5http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/caracteristicas_gerais_indigenas/default_uf_pdf.shtm

6Caderno Amanhã, jornal O Globo, Rio de Janeiro, edição de 06/11/2012

7Trecho da música “Que país é este?”, da Legião Urbana – álbum “Que país é este?” (EMI, 1987)

8http://www.natureba.com.br/carta-cacique-seatle.htm

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